Retrato 3 x 4


            Na gaveta mais profunda do meu coração, guardei o seu retrato três por quatro. Preto e branco. Sem data nem dedicatória. Apenas os seus olhos indiferentes, tristes e distantes a fitar a máquina. Onde andava o seu sorriso? - Ah, é verdade, tínhamos terminado! A blusa escura, reforçava, com vigor, o contorno do seu rosto contra o pano de fundo branco. Este pequeno efeito deixava transparecer no seu olhar o desejo cúmplice dividido nas noites das festas de amor. A foto, no entanto, não foi fiel à beleza dos seus cabelos. Claros e ondulados, tornavam-se ligeiramente avermelha- dos, quase enrubescidos, quando o sol vinha discretamente beijá-los. Infelizmente, restaram escuros, na infidelidade das cores. Feliz, notei que você manteve no pescoço a correntinha com a figa de ouro que lhe presenteei. Recordo-me que a ofertei com muito carinho e sacrifício da minha juvenil mesada.

            Por quê brigamos? Não me lembro, com certeza por motivo fútil tão comum aos jovens enamorados. Decorrido o tempo que eu imaginei suficiente para voltarmos, o mesquinho orgulho triunfou sobre a razão. Com raiva, rasguei o seu retrato em várias partes, mas não o joguei fora. Uma força estranha o manteve no meu coração.

            Se fosse indígena, na sua linguagem simples e pura, diria que tantas luas se passaram que coração de homem branco refugiou-se em outros amores. Nem frio forte do desprezo conseguiu sufocar calor fogueira que ainda ardia em seu peito. Qual cor pintura índio usa para matar saudade?

            Na verdade, era um sentimento caleidoscópico. Conforme a vida girava, cristalizados pedacinhos ora se juntavam ora se repeliam formando as mais diversas imagens de saudade, de indiferença, de curiosidade, enfim, todas as cores e imagens que ela podia improvisar.

            Depois de muitas luas, sempre surgirá uma que não necessariamente estará visível. Poderá estar chovendo. Poderá vir envolta numa nuvem de saudade, mas, o normal, é vir nos braços da solidão.

            O tempo é implacável com as coisas do coração. No abandono abandono de uma noite fria, uma vez mais girei lentamente, com esperança, o imaginário caleidoscópio na tentativa final de  reunir os fragmentos dos sonhos ainda presos ao retrato. Surpreso, senti que o milagre estava prestes a acontecer. Os pedaços, magicamente, foram se unindo vagarosamente no retorno ao formato original. Entre surpreso e ansioso, inutilmente aguardei pelo último pedaço... O sorriso!

            Pela janela, sem êxito, tentei encontrá-lo entre as estrelas. Quem sabe disfarçado nas sombras da Lua? Também não. Desiludido, no reflexo da janela busquei, pelo menos, encontrar o meu sorriso, mas, solidário, ele também não existia mais...

Domingos Alicata
Rio de Janeiro - RJ - 19/02/2005




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