Há na rua onde moro, um homem muito pobrezinho. De
dia, ele fica sentado na calçada, ou sobre o pequeno muro que sustenta
as grades que protegem minha casa. Acomodado ali ele tem
ampla visão dos veículos estacionados. À noite, como um guardião, dorme
deitado à minha porta.
Assim que acordo, olho pela janela e o vejo arrumando suas coisi-nhas.
Ele é muito organizado.
Por ser muito higiênico, todas as manhãs ele me pede permissão para
usar minha água.
Abro o portão, deixo-o entrar. A primeira coisa que ele faz, depois de
fazer a barba, é lavar o rosto e os braços. Depois, sem
nenhum cons-trangimento, pede-me emprestado um balde e um pouco de sabão em pó.
Arregaça
as mangas de sua camisa amarelada, e, com vigor, ensaboa e
esfrega seus panos com tanto primor, que eles ficam lim-pinhos.
Muitas vezes, eu lhe peço para cortar a grama do meu jardim. En-quanto a tesoura vai podando as plantas, ele vai desabafando... É nessa ocasião,
que ele me fala um pouco sobre sua vida.
São Paulino, é assim que ele é conhecido aqui no bairro; não impor-tuna ninguém, só dirige a palavra a alguém, quando se faz
necessá-rio.
Logo que ele soube que meu filho ficou desempregado, tocou a cam-painha de casa e me disse, com seu falar baixo e
manso: Não me im-porto de
dividir o que ganho com seu filho. Sei que ele está desem-pregado e que
se casou há pouco tempo. Diga-lhe que, apesar de sa-ber que ele é psicólogo,
estou
pronto a dividir com ele o meu ganho. Ofereço a ele o emprego de
guardador
de carro de um lado da rua. Olhando os carros, ele vai ganhar um
tutu. Deixo-o escolher o lado que quiser. O dinheirinho que entrar já dará
para comprar o
pão e o leite.
Mentindo, comuniquei-lhe que meu Edu estava trabalhando na
rua como vendedor, e, emocionada, agradeci a ele por tanta generosida-de.
Aquela pessoa que tinha tão pouco, dentro da grandiosidade de seu
coração se propunha a dividir esse pouco, com meu filho, para que ele
obtivesse o sustento de sua família.
A partir desse dia, comecei a ver esse ser humano de uma forma
muito
especial.
Há quinze dias ele pediu para que eu guardasse um pacotinho
de re-médios, pois tinha medo que o roubassem. Quando perguntei se ele estava doente, ele me contou que estivera fazendo vários exames e que os mesmos
detectaram câncer de pele. Enquanto ele falava, pro-curei em seus olhos ver
alguma dor, sentir em sua voz alguma revol-ta, mas nada
percebi. Perguntei-lhe como se sentia por estar doente e não ter
ninguém ao seu lado, e, ele apenas respondeu: É a vida!
Ontem de manhã ele tocou a campainha, como faz sempre. Desde que
o conheço, foi a primeira vez que o vi triste. Levei seu cafezinho habitual, e
perguntei se ele estava com alguma dor. Ele, com os olhos cheios de
lágrimas,
respondeu: O câncer não me machuca, não, a única dor
que está me maltratando demais, é a dor da rejeição. Sabe dona Muriel,
todos os meus amigos,
todos os transeuntes se afastaram de mim, eles estão com medo que minhas
feridas possam contaminá-los.
Com muita pena do André, disse-lhe que eu gostava dele, como se
ele
fosse meu irmão. Que ele podia contar comigo.
Espelhando-me nele, resolvi repartir a única coisa que tinha para dar...
Abri os braços e falei: Me dá um abraço André. Ele me olhou in-crédulo,
eu o abracei, e ele encostou a cabeça no meu ombro e cho-rou.